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O George Saunders lançou seu livro Dez de dezembro, no Brasil, na semana passada. No ano passado, o mesmo George Saunders foi convidado para discursar na formatura da turma de 2013 da Syracuse University. Seu discurso não falou apenas sobre o futuro profissional dos alunos ou os desafios que encontrariam. Saunders lembrou os recém-formados sobre uma coisa muito mais importante: as pessoas devem ser mais gentis umas com as outras, independente de seus objetivos.
Esse post é dedicado às palavras do George para que passemos a nos dedicar à gentileza cotidiana que, assim como o amor desinteressado, pode mudar o mundo!
“Através dos tempos, estabeleceu-se um padrão para este tipo de discurso, a saber: algum velhote, já bem entrado em anos, que no curso de sua vida cometeu uma série de equívocos lamentáveis (este sou eu), oferece aconselhamento sincero a um grupo de jovens brilhantes e viris, cujos melhores anos de suas vidas estão por vir (estes são vocês).
Pretendo respeitar essa tradição.
Assim, se há algo útil que vocês podem obter de um velho, além de lhes pedir dinheiro emprestado, ou insistir para eles mostrarem algum dos seus antigos passos de “dança”, para fazê-los rir enquanto assistem, é perguntar a ele: “O que você lamenta em seu passado?” E eles lhes dirão. Em algumas ocasiões, como vocês devem saber, eles lhes dirão mesmo se ninguém tiver perguntado nada. Em outras ainda, mesmo que vocês tenham lhes pedido especificamente para não contarem nada, eles vão falar.
O que eu lamento, então? Ter sido pobre ocasionalmente? Não mesmo. Ter tido empregos terríveis, como “desconjuntador em um abatedouro”? (E nem me perguntem o que isso implica.) Não, não lamento por isso. Mergulhar pelado num rio em Sumatra, um pouco alterado, e ao olhar para cima divisar uns trezentos macacos sentados em um cano, fazendo cocô no rio, no rio em que eu estava nadando, com minha boca aberta, pelado? E cair mortalmente enfermo logo a seguir, continuando assim nos sete meses seguintes? Não muito. Será que me lamento pelas ocasionais humilhações? Como aquela vez em que, jogando hockey diante de um público enorme, que incluía essa garota de quem eu gostava imensamente, eu de algum modo consegui, enquanto caía e soltava um cacarejar estranhíssimo, marcar um gol contra e ao mesmo tempo lançar meu bastão em voo na direção do público, não acertando aquela garota por um triz? Não, nem isso eu lamento.
Mas eis algo que realmente lamento.
Quando eu estava no sétimo ano, uma garota nova entrou pra nossa turma. Para preservar os envolvidos, seu nome neste discurso de formatura será “Ellen”. Ellen era miúda, tímida. Usava aqueles óculos azuis em forma de gatinhos que, naquele tempo, só mulheres mais velhas usavam. Quando estava tensa, e isso era praticamente sempre, ela costumava colocar uma mecha de seu próprio cabelo na boca e passava a mastigar aquilo.
Bem, ela se mudou para a nossa escola e para o nosso bairro e na maior parte do tempo era ignorada, às vezes zoada (“É gostoso o seu cabelo?” — esse tipo de coisa.). Eu percebia que isso a magoava. Ainda consigo lembrar sua aparência depois que recebia esse tipo de ofensa: os olhos pra baixo, um pouco encurvada, como se, tendo sido justamente lembrada de seu lugar na ordem das coisas, ela tentasse, tanto quanto possível, desaparecer. Pouco depois, ela se afastava, o cacho de cabelos ainda em sua boca. Em sua casa, eu imaginava, depois da escola, sua mãe faria aquelas perguntas padrão: “Como foi o seu dia, meu bem?”, e ela diria, “Oh, bem.” E a mãe continuaria, “Fez algum amigo?”, e ela diria, “Claro, um monte.”
De vez em quando eu a via caminhando sozinha no quintal da frente da casa dela, como se com medo de sair.
E então — eles se mudaram. E é tudo. Nenhuma tragédia, nenhuma grande humilhação final.
Num dia ela estava lá, no outro, não estava. Fim da história.
Então, por que lamento isso? Por que, passados quarenta e dois anos, continuo a lembrar disso? Em comparação à maioria dos outros garotos eu até que fui bem legal com ela. Jamais lhe disse uma palavra rude. Na verdade, algumas vezes eu até a defendi (timidamente).
E mesmo assim… Isso ainda me incomoda. Então, eis aqui algo que eu sei que é verdade, embora seja um pouco piegas, e eu não sei bem o que fazer com isto. O que eu mais me arrependo em minha vida são dos fracassos em ser gentil. Aqueles momentos em que outro ser humano fica ali, na minha frente, sofrendo, e eu reajo… sensatamente. Discretamente. Timidamente.
Ou, vendo as coisas pelo outro lado do telescópio: Quem, em sua vida, você lembra com mais carinho, da forma mais calorosa e irrestrita? Os que foram mais gentis com vocês, aposto. É meio cômodo, talvez, e por certo difícil de praticar, mas eu acho que como meta de vida há coisas bem piores do que tentar ser mais gentil.
Agora, a pergunta de um milhão: O que há de errado conosco? Por que não somos mais gentis?”